LETALIDADE PRISIONAL E NECROPOLÍTICA
O “DEIXAR MORRER” NA GESTÃO DA SANÇÃO EM SÃO PAULO
Palavras-chave:
VIOLÊNCIA ESTATAL, SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL, LETALIDADE PRISIONAL, NECROPOLÍTICAResumo
O trabalho integra a pesquisa de doutorado em andamento voltada à compreensão das mortes sob custódia prisional no estado de São Paulo. O objetivo é compreender, à luz do quadro teórico da necropolítica, a dinâmica de atuação dos agentes estatais envolvidos nos processos de gestão da sanção, no tocante ao modo como a pena está sendo vivida e a morte produzida no contexto da prisão, em relação à maneira como decidem, interagem e se manifestam nos autos processuais. A partir de um olhar direcionado à articulação dos arranjos normativo-institucionais, à produção de documentos e às dinâmicas de atuação dos atores que compõem o sistema de justiça criminal e penitenciário, pretende-se investigar os discursos mobilizados nos processos decisórios, além dos fatores que pautam a experiência prisional e que podem estar implicados na morte sob custódia prisional. Para isso, um dos estudos de caso em andamento foi acessado via Ponte Jornalismo e envolve a prisão e morte de Gabriel (nome fictício), aos 22 anos, pardo, durante o cumprimento da pena privativa de liberdade. O foco do estudo consistiu nos autos completos do processo judicial de execução penal arquivado após sentença de “extinção da punibilidade pela morte do agente” (artigo 107, inciso I, do Código Penal) e do processo de solicitação de assistência médica, que se tornou um procedimento administrativo de apuração preliminar do óbito. O estudo voltou-se à análise dos laudos médicos, pedido de prisão domiciliar, respostas da administração penitenciária a ofícios, manifestações do Ministério Público, decisões judiciais e certidão de óbito, bem como os relatos veiculados pela mãe na reportagem da Ponte Jornalismo. Embora a causa da morte não tenha sido esclarecida, constando como “morte indeterminada” na certidão de óbito, no Boletim de Ocorrência há a informação de que a morte foi causada por doença (“morte natural”). A análise dos documentos – que apresentam as narrativas dos atores do sistema de justiça criminal e de saúde – e dos relatos da mãe de Gabriel evidenciam percepções diferentes sobre a responsabilidade por essa morte. A análise baseou-se no conceito de necropolítica de Achille Mbembe, que corresponde ao poder de matar e à capacidade de ditar quem pode ou não viver, a partir de uma perspectiva racializada e mediada pelo Estado. A letalidade prisional pode ser vista como uma dimensão da necropolítica quando, para além do massacre deliberado, o “deixar morrer” torna-se admissível e seus limites encontram na omissão do Estado o poder sobre a morte. Como resultado dessa análise inicial, destaco que a manutenção da prisão durante as diversas idas de Gabriel à Santa Casa e ao Hospital e retorno à prisão, sem possibilidade de cumprir a pena em outros espaços fora do ambiente prisional, demonstra a negação de condições mínimas de vida e de tratamento de saúde adequado, reforçando a ideia da prisão como a única alternativa penal que operacionaliza o “deixar morrer”, uma das expressões da violência estatal.