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QUANDO A ILUMINAÇÃO SOMBREIA O TEXTO - UMA MIRADA COM CALVO GONZÁLEZ
Palavras-chave:
TEXTO, NORMATIVIDADE, INTÉRPRETE, TEMPORALIDADE, FATICIDADEResumo
Calvo González, com sua teoria narrativista, permite encenar o desdobramento de um dado simples: de um texto não se consegue desambiguar os sentidos que nele se encerram e que dele dimanam, com a análise restrita tão somente ao campo da escritura, em razão da própria mecânica da atividade interpretativa. A tarefa reclama a colheita de dados extratextuais, mormente nos escritos afetos ao campo jurídico, porque a temporalidade gira o mundo e a facticidade impõe um exame particular e próprio. Nesse viés, o que está à margem, ou para além dela, importa. Desde a leitura do compilado de documentos conhecido como Decretais de Gregório IX e da consideração das ilustrações nele contidas, as primeiras traçadas pelos copistas originais - escribas do sul da França, com motivos e cenas episcopais – e outras adicionadas por ilustradores londrinos, com conteúdo estranho, irônico, engraçado, González instala um questionamento voltado ao intento dos ilustradores, a divisar se compreendiam e buscavam seguir o sentido do texto, funcionando as imagens como apoio e conectividade da leitura ou, ao reverso, se produziam uma desagregação consciente, uma ausência de acoplamento a constituir um correlato, uma parábola metatextual. O autor espanhol constata que na disposição da obra o texto permanece incólume, os desenhos se bastam com os brancos: este efeito ornamental provoca como consequência que esta ilustração decaia como marginal, por estar a margem da escritura, do texto, do jurídico e do Direito. A mesma superfície material acolhe o texto e a ilustração. Desse modo, a textualidade da Carta-Decreto se vê sombreada pela texturalidade da ilustração que lhe informa: por trás da escritura do texto jurídico normativo não restou outro espaço senão aquele preterido, deixado à margem, que é precisamente aquele onde se albergam as narrações, como sói acontecer no campo jurídico no qual a apreciação dos fatos vem sempre assombrada pelo discurso normativo, conforme o direito substancial invocado e o direito processual que lhe disciplina o trâmite. Mas, a natureza é mais rica e insondável que nossas humildes previsões, de maneira que o código é irremediavelmente reticente, como todo texto o é (ECO, 2014). Há sempre um espaço em que a vida vivida, os fatos encontram um sulco e insidiosamente ingressam no mundo jurídico de modo a perturbar-lhe a completude sonhada. Neste golpe ou movimento, a rismar um direito-outro (GONZALEZ, 2016:69) é que a intriga ganha corpo, insuflada por dados que atentam contra a mera predição textual. Tal percepção consoa com a noção de Gadamer de que a interpretação se dá no encontro do mundo do texto com o mundo do intérprete, logo recebe um aporte produtivo - e não meramente reprodutivo – do intérprete, então importa considerar o modo compreensivo em seu aspecto dinâmico havido no tríduo compreensão-interpretação-aplicação. Assim, a importância primeva dos fatos e o modo de sua apresentação numa construção discursiva vêm divisada no seio da teoria narrativista. Outro aporte a corroer a rigidez do texto normativo advém da contribuição do intérprete; da temporalidade, que é sempre nova; e da faticidade, que é sempre outra.