O CONCEITO DE CIS-HETERONORMATIVIDADE E SEU POTENCIAL ANALÍTICO PARA O ESTUDO DA REGULAÇÃO JURÍDICA DOS CORPOS

OLHARES TRANSFEMINISTAS SOBRE A AUTONOMIA REPRODUTIVA DE PESSOAS TRANS NO BRASIL

Autores

  • Francielle Elisabet Nogueira Lima UFPR

DOI:

https://doi.org/10.29327/1163602.7-285

Palavras-chave:

AUTONOMIA REPRODUTIVA, CIS-HETERONORMATIVIDADE, TRANSFEMINISMO

Resumo

O direito, compreendido tradicionalmente como instância formal de regulação das relações sociais, pode ser pensado como uma estratégia que produz gênero ou, então, como uma tecnologia de gênero, uma vez que seu discurso constrói e reproduz práticas generificadas sobre os sujeitos e sobre os corpos. A racionalidade jurídica contemporânea, cujo gérmen remonta à modernidade colonizadora, identifica-se com a matriz heterossexual que exige uma correspondência linear entre sexo/gênero/desejo, conferindo inteligibilidade ao modelo hegemônico do binarismo sexual masculino-feminino, imputando o lugar de abjeção aos corpos que não se conformam à cis-heteronorma. Da mesma forma, o saber médico tem-se revelado central na objetificação de expressões e identidades gênero-dissidentes, universalizando-as por meio de uma norma psiquiátrica, encontrando no discurso jurídico, em geral, conforto para as premissas que estruturaram a noção nosológica da transexualidade e a apreensão do paradigma do transexual verdadeiro. No Brasil, no histórico de julgamento de ações versando sobre a alteração registral de pessoas trans e nas elaborações teóricas sobre transexualidade em outras searas, nota-se como os discursos médico e jurídico frequentemente se retroalimentam quando tematizam questões relativas à transgeneridade, muito embora recentes avanços tenham sido vislumbrados no sentido de mitigar este paradigma patologizante. Citam-se como exemplos a atualização versada pela Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID), que, em sua 11ª versão, que retirou a transexualidade da categoria de transtornos mentais para a incluí-la em capítulo sobre questões relativas à saúde sexual sob a categoria “incongruência de gênero”, bem como o próprio resultado na ADI 4275, que importou deslocamentos no estatuto de patologização da população trans, ao permitir a alteração registral pautada na autodeterminação identitária. Não obstante, os direitos à autonomia e à saúde reprodutiva trans permanecem entre ausências e invisibilidades. A carência de estudos qualificados sobre a afetação da capacidade reprodutiva a partir da ministração de hormonioterapias, e a precária informação sobre os procedimentos de preservação de gametas reforça a ideia de que há um processo de esterilização simbólica dessa população. Tanto a Portaria nº 2.803/2013 (que redefiniu e ampliou o processo transexualizador no SUS) e a atual Resolução 2.265/2019 (que dispõe sobre cuidados específicos a pessoas trans) são silentes sobre o assunto, embora seja o planejamento familiar, pelo ordenamento jurídico pátrio, direito de toda pessoa cidadã. Além disso, segundo os Princípios de Yogyakarta, o exercício de direitos reprodutivos deve ser garantido pelos Estados, os quais também devem assegurar o direito de constituir família, independentemente da orientação sexual e da identidade de gênero. Tendo em vista esses apontamentos, busca-se, através de pesquisa pautada em revisão bibliográfica e análise documental, responder à seguinte questão: como o exercício da autonomia reprodutiva de pessoas trans tem sido efetivado no Brasil? Elegem-se como referencial teórico epistemologias transfeministas, notadamente a partir da obra de Viviane Vergueiro (2015), Thiago Coacci (2018) e Camilla Gomes (2017). Nesta toada, o conceito de cis-heteronormatividade tem centralidade no presente estudo, porquanto desnaturaliza percepções hegemônicas sobre a construção dos sujeitos e dos corpos - o que inclui a questão dos direitos reprodutivos.

Publicado

31.12.2022